As curvas do caminho
Quando o futuro maestro, compositor e arranjador Laércio de Freitas tinha entre 4 e 5 anos de idade, sua mãe decidiu alfabetizá-lo. Helena, ouvinte assídua da Rádio Nacional e estudante de violino, cedo percebeu o modo como o filho se deixava arrebatar pela música. Ainda criança de colo e com a graça dos recém-chegados à vida, ao ouvir no rádio os primeiros acordes de Dança das Horas, tema de abertura de uma novela, balbuciava um pedido de silêncio: “Cuta, cuta”. Antes dos 6 anos, ganhou três cadernos para as lições, um para treinar o abecedário maiúsculo, outro para o minúsculo e o terceiro para notação musical. Aos 7 entrou no Conservatório Carlos Gomes, de onde saiu aos 16.
“Foi muito orgânico, parecia que as coisas já estavam sabidas, faltava apenas compreender”, recorda Freitas, aos 75 anos. O requisitado criador de arranjos para canções consagradas por Pery Ribeiro, Clara Nunes, Elza Soares e outros tantos nomes de relevo subdimensiona o talento quando fala aos alunos sobre a caminhada profissional: “Não sou mais que vocês, apenas fiz todas as curvas para chegar até aqui”.
Prosa entremeada de humor, voz grave e jeito sereno de falar, o maestro relembra o ambiente familiar em Campinas. Numa cena possível no fil- me Do Mundo Nada Se Leva (Frank Ca- pra), Helena enchia a casa de melodias clássicas ao violino, enquanto Ernes- to se comprazia em tocar modas popu- lares no bandolim. A algaravia sonora por vezes era interrompida por Irene, uma das irmãs de Freitas, ao convo- car para a sala uma audição do pianis- ta mirim. “Agora o menino Laércio de Freitas vai tocar.” E ele dirigia-se ao piano sem cerimônia ou afetação. “Eu não era exibido, eu gostava de música.” Sem vitrola em casa, era o rádio a grande fonte musical. “Ficava fuçando nas ondas curtas. Gostava de ouvir as orquestras de David Rose e George Melachrino. Minha mãe então me matriculou no Clube Papai Noel, famoso programa de talentos infantis, onde passei a me apresentar.” Outra grande atração da Tupi era Gurilândia, ancorado por Homero Silva e tendo o maestro Francisco Dorce a comandar a orquestra.
Numa das apresentações, Esmeraldino Salles, famoso cavaquinista e contrabaixista, integrante do Regional do Rago e músico contratado da Tupi, cruza o palco e vê o garoto dedilhando o teclado. Afaga-lhe a cabeça e incentiva, “toca, moleque”. O músico alto e corpulento seria uma das primeiras influências do futuro maestro. A amizade se estreitaria e Esmê, como era conhecido no meio musical, formaria um trio com Freitas ao piano e Fuminho na bateria para acompanhar a orquestra montada pelo maestro Erlon Chaves para o recém-nascido Canal 2, TV Cultura, instalado na Rua 7 de Abril.
“Com Esmê aprendi a compor introduções”, conta o pianista, cuja formação erudita forneceu úteis ferramentas na lida com a música popular. “Muito cedo percebi ser possível produzir no piano o que eu ouvia nas orquestras. Não entendo essa dicotomia entre popular e erudito. Popular não quer dizer menor e sim de alcance maior. O que existe é música, ainda bem.” Freitas aposta no conhecimento como forma de sedimentar o interesse. E atribui ao estudo realizado com afinco a capacidade de apurar as antenas da sensibilidade.
Entre um gole no chá de capim-limão e uma garfada num pedaço de bolo de maçã, relembra conversa ocorrida entre Chico Xavier e o amigo Radamés Gnattali. “O maestro perguntou a ele: ‘Chico, como é esse negócio de música, a gente mesmo que faz ou é outra coisa?’ Chico disse: ‘Há um ponto no tempo que irradia para o universo, quem estiver com a antena limpa capta.’”
Freitas conviveu com Gnattali por dez anos, período em que o campineiro morou no Rio de Janeiro. “Constava que ele tinha pavio curto. Mentira, ele não tinha pavio algum”, diverte-se ao comentar o lendário mau humor do colega de batuta. “Ele não dava aulas, dizia que aluno é burro. Mas sempre me tratou bem. A exceção foi quando o J. T. Meirelles, produtor do disco Sexteto, pediu para eu ir à Odeon buscar a partitura da parte que iria interpretar. Peguei a do segundo piano e 15 dias depois liguei para o pai, pois Radamés dizia que eu era o filho preto dele. E ouvi o seguinte, ‘tio (apelido de Freitas), ficou burro? Escrevi o segundo piano para eu tocar’. ‘Já estudei’, disse. E assim gravei a parte mais difícil.”
O músico estreou na arte do arranjo no programa A Grande Chance, criado e apre- sentado por Flávio Cavalcanti. O talento foi conquistando nomes como Arthur Moreira Lima, Banda Mantiqueira, Jazz Sinfônica e Sinfônica do Estado de São Paulo e meio mundo de artistas, dentro e fora do Brasil. “A música é uma mulher, o arranjo é a roupa que faço de forma tal que para portá-la com gáudio e orgulho ela não tenha de mudar o jeito de caminhar”, define.
Na caminhada de aprimoramento, muito aprendeu com Bernardo Federowski, condutor da orquestra da Tupi. “Eu vivia perguntando coisas e ele me ajudava, recomendava leituras.” Ao lado do pernambucano Severino Araújo e sua lendária Orquestra Tabajara entendeu que os arranjos para gafieira tinham de priorizar os pés alados dos dançarinos.
Nos anos 1970, Freitas viaja ao México para substituir Luiz Eça no Tamba Trio, então de nome mudado para Tamba Quatro. Fica dois anos entre Guadalajara, Matamoros, Cidade do México e num momento de incontornável banzo compõe seu maior sucesso, Capim Gordura. “Não fiquei rico, mas comprei um carro.” A música abriu caminho para a onda de rock rural de Zé Rodrix e sua Casa no Campo.
Se os ecos de Capim Gordura enfraqueceram ao longo do tempo, os choros compostos pelo maestro foram incorporados ao repertório dos amantes do gênero. Inovadores, elaborados, sofisticados. Às tentativas de admiradores de definir suas composições, o compositor responde com a habitual simplicidade. “O segredo talvez sejam as ideias variadas. Algumas coisas são ousadas. O fluxo da melodia passa por caminhos tortuosos geralmente ausentes da maioria dos choros antigos. Claro que aí entra o uso de dados da música erudita. É a informação a serviço de um bom propósito, sem querer ser diferente. Você pode dizer a mesma coisa de outro jeito, atenuar a dureza, não trazer para a música a dificuldade que teve.”
Artista de poucos discos, em São Paulo no Balanço do Choro (1980) registrou algumas das compôsções caras a intérpretes como Mário Eugênio, Nailor Proveta e Alessandro Penezzi. Entre as faixas, Ao Nosso Amigo Esmê relembra o velho companheiro e inspirador Esmeraldino Salles. Acompanhado pelo violão excepcional de Penezzi lançou em 2006 o CD Laércio de Freitas Homenageia Jacob do Bandolim, parceria que será renovada neste semestre com um disco cujo repertório autoral dá continuidade a São Paulo no Balanço do Choro. Em ano atípico, o compositor prepara um segundo disco no qual interpreta Ernesto Nazareth.
Com o entusiasmo habitual, ensaia com a cantora Adriana Moreira repertório para show em homenagem a Elza Soares e Elizeth Cardoso, sábado 30 na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. “Vai ser bonito.” Com Piki, a seu lado há 50 anos, desde que numa matinê o então jovem pianista enlaçou-a nos braços e girou pelo salão ao som matador de A Whiter Shade of Pale, sente-se preparado para percorrer longa jornada. “Há muita música esperando ser composta.” Satisfeito com as curvas do caminho, poderia se dizer realizado, pois goza de privilégio por muitos almejado: “A grande alegria do músico é ser compreendido. Eu não reclamo não”. •